CRÍTICA DE “VAPOR: OCUPAÇÃO INFILTRÁVEL”, DA ORIGINAL BOMBER CREW (PI)
Por Heloísa Sousa (Farofa Crítica/RN)
Em 1967, o artista norte-americano Robert Morris cria uma obra, talvez escultórica, nomeada
“Steam”, onde uma fumaça constante emerge de um quadrado de rochas posicionado em um
campo. Essa obra que se alinhava às ideias de objetos específicos e da arte minimalista na
segunda metade do século XX nos EUA foi traduzida como “Vapor”. A materialidade fugidia do
vapor adentra, então, o campo imagético da arte desafiando as condições de escultura e de
encenação; é algo concreto e notável, mas com movimentos próprios e incontroláveis.
Possivelmente, a imagem do vapor adentra o campo simbólico e visual do norte global, com
tremenda força, após a Revolução Industrial. E faz isso enquanto fumaça, um índice marcante da
força de trabalho operária e, simultaneamente, de sua opressão. É o resíduo, a produção de um
desgaste, de uma combustão, um tipo de morte ou esvanecimento. Mas, se direcionarmos o olhar
ao sul global, em algumas práticas ritualísticas de povos originários ou ainda nas práticas
sincréticas do nosso tempo, podemos enxergar outras simbologias e visualidades para este
índice. Partindo de outras formas de aquecimento, esse vapor de menor espacialidade marca
alquimias de cura. De um lado, grandes fumaças de queimas poluentes; de outro, pequenos
vapores de queimas de limpeza.
Ao escolher como título de sua obra em dança a palavra “Vapor”, o Original Bomber Crew de
Teresina (PI), nos indica ficar mais tempo com esse signo e pensá-lo no campo da arte e da vida.
Paradoxalmente, o vapor em si, como matéria visível, aparece de modo pequeno e pontual;
porque o vapor, nesta obra, parece mais nomear uma estética política que (des)organiza os
referenciais de uma dança e de um corpo posto à margem. Tudo o que vemos em cena é bastante
sólido – mesmo que se fale das águas e mesmo que haja tinta, elas não escorrem. As matérias
estão ali com suas tridimensionalidades em um devir-vapor. Em um instante podem não mais
estar. Penso então em sublimação. Aí as coisas se tornam mais complexas. Na realidade, fumaça
e vapor, embora desenhadas em nosso imaginário como formas semelhantes, não são a mesma
coisa e se diferem também pelos impactos negativos ou positivos que causam no ambiente e nos
corpos. A fumaça é suja, o vapor é limpo.
Ao pensar em sublimação, podemos imaginar o processo de aquecimento que faz com que os
sólidos transitem ao estado gasoso, sem passar pelo líquido. Aqui, podemos criar paralelos com
as cenas marginais do circuito das artes cênicas no Brasil. O que o OBC compõe, sob a direção
sagaz de Allexandre Bomber, é uma absurda atualização das composições cênicas na Região
Nordeste, escapando totalmente dos estereótipos da margem e do eixo, criando uma linha
tangente que produz uma cena de destacável singularidade e que faz vibrar nosso território como
epicentro. Com uma sofistação dramatúrgica e procedimental, esses artistas criam uma obra que
manifesta o chão de Teresina como ponto original e paradigma histórico, desviando radicalmente
das formas com as quais algumas cenas contemporâneas do Nordeste espelham as imagens do
eixo. Isso desenha o OBC como uma grupalidade que consegue promover uma guinada histórica
na cena deste país, a partir de um território específico (afinal, já compreendemos a ficção dos
universais, certo?). Voltando ao paralelo da sublimação, ao invés de aquecer a solidez do nosso
chão ao estado líquido, palatável e maleável aos recipientes do eixo; o grupo aquece esta solidez
marginal até alcançar diretamente o estado gasoso, um vapor incapturável e translúcido. Aquilo
que se espalha e turva.

Esse incapturável também se dá o direito de desaparecer – no sentido do jogo entre a aparição e a
desaparição – o que diverge da lógica do apagamento. O desaparecimento aqui é um gesto de
autonomia e de preservação de si como algo opaco ou translúcido, um dar-se a ver a partir dos
nossos desejos e não das arbitrariedades do outro. Já o apagamento como gesto de opressão,
promove justamente a realidade oposta, da não preservação e da deslegitimação. Se os artistas
do OBC criam “Vapor” a partir dos sumiços dados de formas violentas, a linguagem em cena que
eles instauram captura o termo como um contra-golpe. Penso sobre isso junto com o crítico de
teatro Guilherme Diniz (MG) numa fila durante o MIRADA – Festival Ibero Americano de Artes
Cênicas (SP) em 2024, que marcou a estreia de “Vapor”. Assistir a obra pela segunda vez durante
a programação do Junta Teresina, um mês depois, confirmou as percepções que já se
desenhavam fortemente mesmo diante das instabilidades de uma estreia. A ordem acontecimental
e de apresentação em “Vapor” é tão forte que o desejo de encontrar a obra sucessivas vezes
nasce dessa espectação. O contra-golpe é tão eficiente que a vaporização promovida pela obra,
mesmo tornando visível ausências a partir da lida com os vestígios, as marcas, as sombras que
ficam do que desaparecem, não elabora um afeto de despotencialização (no sentido espinosano),
mas sim um afeto de engrandecimento, de pertencimento e de comunhão.
Quero dizer então, que é notável como o OBC inventa uma linguagem em dança – assumindo aqui
todas as crises e embates que o termo linguagem trava com a arte – que eles nomeiam como
Dança-Quebrada. A obra apresenta algo que não se enquadra nos processos comuns de
significação, não há uma narrativa a ser compreendida e repetida, e mesmo a noção de
desenvolvimento aqui opera fragmentação e descontinuidade. Se pensarmos como o filósofo
argentino Eduardo Del Estal, podemos afirmar que o OBC cria uma obra para os quais o
centro/eixo não possui significantes para traduzi-lo e isso pode estruturar uma impressão de “não
entendimento” ou fazê-los encontrar termos que possam caracterizar ou categorizar o trabalho do
grupo de modo equivocado. Mas, há algo de comum entre cidades do Nordeste que torna vibrante
o que eles dançam e é totalmente plausível ao nosso olhar. Há um mistério e um comum nesse
vapor – que também ecoa em obras de outros artistas da dança no Nordeste como a Cia. dos Pés
(AL), Alexandre Américo (RN) e Flávia Pinheiro (PE).
Em diálogos críticos truncados que buscam posicionar palavras, sem isenção dos gestos de poder
em torno dessas enunciações, já ouvi qualificarem esta obra a partir da ideia de precariedade.
Não são incomuns as tentativas de nomear cenas do Nordeste como alinhadas às noções de
precariedade ou gambiarra, ambas noções que partem de uma percepção de escassez. Mas,
como nomear precária a cena do OBC diante de tanta abundância? Seria a composição de um
chão cênico por placas de papelão, geometricamente posicionadas, mais precário do que um
linóleo branco sob o palco? Mesmo que esse primeiro exija uma artesania de montagem muito
mais demorada e rebuscada? Porque as cenas em dança de Eduardo Fukushima, artista
paulistano da dança, não são nomeadas do mesmo modo, mas sim creditadas como
minimalistas? O que é, de fato, precário? A materialidade ou os valores atribuídos a elas? E quem
atribui esses valores?
Onde o centro vê precariedade, em suas lógicas fetichistas; nós vemos realidade. Não nos falta
matéria, nem vida e nem o Real em si. O que nos falta é acesso aos recursos que nos
economizaria tempo.
A composição cenográfica apresenta-se em instalação e faz sobrepôr diversas paisagens por
articulação dos objetos trazidos à cena, tendo sempre ao fundo essa cor amarronzada do papelão – como areia – apagando radicalmente o preto convencional das caixas cênicas ou o branco das
galerias; uma fuga da experiência dos espaços institucionalizados também pelas cores. Esse
gesto afirma o corpo artista como criador dos espaços e não apenas efeito dele.
“Vapor”, segundo os artistas criadores, refere-se à gíria usada nas quebradas para dizer dos
jovens que morrem pelos sistemas sociais, ao mesmo tempo em que seus pagamentos são
naturalizados. Na contramão das narrativas solipsistas que marcam parte da dança
contemporânea brasileira, o OBC afirma comunidade e coletividade. São sete artistas em cena,
todos homens, Allexandre Bomber, César Costa, Javê Montuchô, Malcom Jefferson, Maurício
Pokémon, Phillip Marinho e Vini Nex, que dançam e escrevem a comunidade em um ponto de
enaltecimento. Diferente da herança colonizada que reafirma que só existe o “eu e suas
sensações”, nessa obra, os afetos são partilhados e entoados em conjunto. Mas uma comunidade
que não afirma coro, e sim convivência de singularidades. Os figurinos materializam isso ao
promover ocultações de rostos, sobreposição de camadas e cores de peças de roupas do
contexto urbano e trabalhador; cria-se mais uma camada de algo “comum”.

A sofistação dos procedimentos de criação aparecem na própria tessitura dramatúrgica. As
estruturas do cotidiano e da cultura são quebradas e suas partes reorganizadas em cena como
fragmentos e repetições que articulam a realidade em outra ordem, mas sem nenhuma
aleatoriedade. É isso que faz com partes do break, da capoeira, do coco consigam emergir como
breves estruturas na coreografia com traços de improvisação. Essas composições em outra
ordem, operação própria da arte, permite que a gente observe o Real através de outras paisagens
desautomatizadas – quase o mesmo que vemos numa Guernica do Picasso, mas sem a fissura
pelas geometrias. É o que faz tornar visível o paralelo entre o pixador e o pescador. Essa dança
desestabiliza e alarga a relação temporal, pois não promove o desenvolvimento convencional,
apenas o acontecimento em si, sem preocupação de eficiência ou evolução. Tanto que a
expectativa do fim se dilui quando o espectador se permite adentrar na obra, pois se não há
encadeamentos, o fim é apenas um ponto de encontro e não uma consequência.
Não terminaria este texto sem destacar a sonoridade composta e executada pelo artista Javé
Montuchô que preenche o espaço em um nível de presença cênica extraordinária e incomum nos
espaços em dança. Montuchô dispõe seus instrumentos a partir do mesmo alfabeto cenográfico
da obra e vai preenchendo de musicalidade até invadir o espaço de cena com seu corpo como
instrumento em si. A canção final é um corte profundo na memória, materializa o discurso e o
desejo do trabalhador posto à margem pelo projeto violento do sistema econômico, mas também
posto em risco pela própria interação com a natureza. Nesse ponto, uma dialética se abre feito
fenda entre o gesto de quem lança a rede ou de quem cobre um corpo morto, a depender daquilo
que nos olha.
FOTOS: Victor Martins